O tabuleiro presidencial se apresenta
Prefeitos eleitos, vamos pensar em 2022

Há anos o Brasil vive, não diferente de muitos outros países, em permanente estado de ânsia eleitoral. Como campeonatos esportivos, a política se tornou uma eterna busca de títulos: tão logo acaba uma disputa, começam os preparativos para um novo certame.
Esse ano não é diferente. Acabada a eleição municipal no último domingo (29/11), começa o processo de contabilização de forças e construção de estratégias. Já é tempo de pré-campanha para 2022. As novas alianças e os cenários de disputas, bem como os jogos partidários começam a ter força para o próximo pleito. Isso tudo ocorre concomitantemente ao cotidiano político, com suas discussões sobre orçamentos e projetos de lei.
Por enquanto, o cenário para 2022 está dividido em quatro grandes blocos: a extrema-direita e a direita, onde disputam o presidente Bolsonaro e o governador de São Paulo, João Dória; a candidatura de Ciro Gomes (PDT); a esquerda, progressista, que aglutina forças como PT, PSOL, PC do B e adjacentes; e a possibilidade de uma ala de candidatos de “fora da política”, como a chapa Huck/Moro noticiada há alguns dias. Sobre esse último grupo, qualquer prognóstico presidencial de candidaturas dessa natureza ainda é pouco mais do que boato. Os principais nomes circulados nessa seara, Huck e Moro, se ocupam da política como um evento secundário. O primeiro parece um conversador interessado, que se reúne e pergunta e convive, como um aspirante que visita treino de profissionais. O segundo está de mudança para os Estados Unidos. Essa mudança do ex-ministro Sérgio Moro demonstra como essas chapas não se sustentam ainda. Desse criadouro político, o relevante é como tais indivíduos, populares sem serem políticos, podem terminar influindo na composição do legislativo, formando uma “bancada de outsiders”, como já aconteceu com Clodovil, Romário, Tiririca e agora uma nova geração de influenciadores digitais.
Pela direita, Dória sai fortalecido das eleições municipais. Manteve o reduto eleitoral tucano em São Paulo, e com isso conseguiu uma narrativa eleitoral de bom gestor. Os históricos aliados dos Tucanos, DEM (e em menor medida MDB) também saíram fortalecidos. O DEM mantém Salvador (Bruno Reis) e conquista Rio de Janeiro (Eduardo Paes), o que fortalece o interesse na aliança entre as legendas, cuja possível coligação teria fortes presença em São Paulo, Bahia e Rio de Janeiro. Se o MDB se juntar ao grupo, traz ainda força no Rio Grande do Sul além de equilibrar estados com tendências mais bolsonaristas, como Roraima, Mato Grosso e Goiás. Uma aliança entre esses três partidos faria essa chapa ser a que teria mais chances de vencer em 2022.
Se o governador de São Paulo viu as peças do tabuleiro político fortalecerem sua posição, o presidente se enfraqueceu eleitoralmente. Embora Bolsonaro tenha sido derrotado em todas as disputas que entrou, o bolsonarismo continua forte. A PM tem se mostrado uma entidade política forte, e a plataforma que apresenta tem agregado votos. Isso significa que um grupo de eleitores que transita nesse espectro político deve ficar na direita, ainda que abandone o presidente. Isso também significa que a estratégia de Dória e Bolsonaro são de choque entre si. O governador de São Paulo quer conquistar os votos bolsonaristas, enquanto Bolsonaro pode tentar repetir a estratégia de ser eleito pela minoria. Ambos sabem que, se chegarem ao segundo turno contra a esquerda, a polarização do país tende determinar a eleição em seu favor. Bolsonaro, principalmente, deve utilizar essa estratégia: polarizar e vencer no segundo turno por menor rejeição, ou seja, um segundo turno polarizado entre (extrema)direita e esquerda progressista pode levar a um voto de rejeição que terminaria por eleger conservadores, ou mesmo reeleger Bolsonaro.
A polarização de segundo turno com derrota da esquerda é uma percepção bastante recorrente entre os analistas políticos. Em todas as eleições municipais, os candidatos de esquerda, fossem do PT, do PSOL, ou mesmo os candidatos apoiados por eles, como o PDT em Fortaleza, receberam ataques “antipetistas”. Essa rejeição à esquerda e ao PT é moeda de aposta entre os candidatos de direita, de extrema direita, que esperam conseguir polarizar um segundo turno a partir da rejeição ao petismo, como rejeição a tudo que é de esquerda. Uma candidatura de Ciro Gomes também leva em consideração essa polarização como elemento crucial: em tese nesse cenário, um candidato que seja o menos pior de todos vence, e Ciro quer ser esse candidato.
Encaixar Ciro em um espectro político é complicado. Ele não é de esquerda, embora tenha sido ministro de Lula e esteja no PDT, partido do Brizola. Ainda assim, o sentimento constante na esquerda é de que Ciro não é seu candidato. Soma-se a essa falta de identidade a tendência do candidato de flertar com diversas vertentes ao mesmo tempo, parecendo ora paradoxal, ora cínico. Além disso, enquanto traço pessoal, Ciro é um adepto de uma retórica forte e polêmica, muitas vezes parecida com um sincericídio’.
A ausência de um espaço ideológico firme para Ciro Gomes se dá em parte porque ele, mais do que todos os políticos brasileiros, pratica um somatório muito próprio de carisma pessoal com propostas ligadas aos anseio do eleitor. Sua retórica caminha da imagem de um político experiente, um homem capaz de construir pontes, um gestor testado, mas também um homem de ação, impulsivo e assertivo. Essa imagem pessoal combina-se com um político que defende a educação pública, a saúde pública, mas também um policiamento ostensivo, e por vezes violento. Diferentemente de um candidato menos vaidoso, mais tímido, com perfil gestor, o ex-governador do Ceará constrói sobre si uma imagem de homem da política capaz de entender os problemas sociais, mas traduzir também os anseios do povo. Evidentemente, essas duas coisas não são complementares, muitas vezes não são sequer compatíveis.
Ciro sabe que não é o nome de desejo de nenhum lado. A direita ideológica quer um candidato com seus valores. Ele teria discurso de respeito à família, de ordem social, sem propostas concretas, mas fundado em valores sociais hegemônicos. A esquerda progressista quer, cada vez mais, candidaturas com identidades e propostas que guardem a mesma trajetória. Manuela, Boulos, Haddad, os três possuem elementos específicos e consistentes nesse retrato. No entanto, a política é feita tanto do que se deseja como do que se abomina, e Ciro tenta ocupar o espaço da menor rejeição sem tentar fisiológico.
Quem não o conhece, imagina que Ciro esteja ligado ao lulismo; o que aumenta sua rejeição com o eleitorado que não é de esquerda. Quem conhecem suas gestões, sabe que elas são de direita, quando muito reformadoras. Dentro dos critérios já estabelecidos, elas conseguem bons resultados, por vezes até melhores do que os dos demais políticos. Seu desafio é conseguir ser o escolhido de um número suficiente de eleitores para, em um segundo turno, ser o de menor rejeição. Ciro espera ser aceito pela esquerda e ser possível para a direita, mas não tem conseguido, em parte porque seu nome sofre com a rejeição do Sudeste a um nome nordestino, um “coronel Ferreira Gomes”, ainda que as eleições em Rio e São Paulo revelem manutenções longevas de clãs e apadrinhados políticos.
À esquerda do espectro político, é possível que haja uma divisão, pelo menos nominal, em diversas candidaturas. Será um setor em que se notará poucas alianças, o que, no entanto, não é decisivo. Todos os grupos ideológicos se dividem, pelo menos nominalmente. A economia partidária tem incentivo de ter candidatos majoritários para atrair votos para as eleições proporcionais. Para além disso, a esquerda enfrenta um grande dilema na eleição de 2022: se ela chegar forte demais para ir ao segundo turno, ela perderá para o candidato mais a direita que houver.
Evidente que nenhum partido quer evitar uma vitória, ou uma melhor derrota, nas urnas. Ir para o segundo turno é sempre bom, já que revela força e ajuda na construção de uma base legislativa. No entanto, a menos que haja alguma grande mudança na realidade nacional, em 2022 a esquerda ainda não terá votos suficientes para vencer uma eleição presidencial, nem se polarizar contra a extrema-direita. Então a primeira lição que a esquerda deve aprender é que a polarização do voto pode custar caro para todos, inclusive para a própria esquerda.
O governo Bolsonaro flertou, e flerta, com golpes e ações antidemocráticas. Sua reeleição apenas prolonga o tempo em que o país estará na corda bamba. Nesse cenário em que a esquerda não é capaz de vencer a eleição, não polarizar contra a mais radical direita é uma solução interessante para as duas principais medidas que o setor progressista deve ter: eleger bancada e construir bases e lideranças.
Não ter capacidade de eleger um presidente em 2022 não é o fim do mundo, especialmente quando o motivo é uma ausência em sua própria capacidade. Se tomarmos o PT como exemplo, está evidente um vazio de poder e representatividade entre a geração do Lula e o grupo do Haddad, Camilo Santana e a geração ainda mais nova, que está começando agora. Os nomes que existem ou ainda não têm representatividade, ou estão muito ligados a Lula e aos governos anteriores.
O passado, com Lula e o que aconteceu entre 2002 e 2016, é história. Serve como lembrete, mas não é mais puxador de voto, a população mudou de necessidade, desejos e mentalidade. Nesse sentido, a esquerda precisa criar nomes e chegar à população com novas possibilidades, como Boulos e Manuela têm feito. Enquanto isso, a geração de Lula precisa começar a transição de poder e de simbologia, como também Erundina mostrou fazer com Boulos. Isso precisa ser feito concomitantemente ao desafio de construir uma plataforma de propostas que responda aos anseios do eleitor.
A eleição de São Paulo mostrou como se pode fazer.
As análises da corrida para prefeitura de São Paulo centram-se fortemente em como o PT esteva fora da disputa; mas essa leitura esconde elementos relevantes. Primeiro que, se é verdade que o partido dos trabalhadores esteve fora da disputa, a plataforma progressista conseguiu, em um ano mais complicado eleitoralmente do que o normal, ser a segunda preferida do eleitor, indo para o segundo turno e tendo próximo da metade do apoio popular. Há um caminho já trilhado desde 2016, quando o então prefeito perdeu no primeiro turno. Naquele ano, o antipetismo era coqueluche nacional. Passados quatro anos, os números de Boulos (PSOL) e Tatto (PT), revelam que uma parcela considerável da população em grandes cidades pode ser atraída pela força partidária da esquerda, por seus quadros renovados, por novas propostas.
Covas foi reeleito, como se imaginava. Contudo, o grande vencedor do pleito foi Boulos e seu partido, que cresceram na vereança e tiveram forte votação no primeiro e no segundo turno. Enquanto isso, o PT, se não saiu vencedor, saiu com bons prognósticos. Por um lado, o partido redescobre que há, na população, uma área de crescimento de suas propostas. A vitória de Boulos é também uma medição de entrada de ideias progressivas, e elas têm terreno fértil para crescer. Por outro lado, a experiência dessa eleição revela a principal fraqueza do PT e o caminho a trilhar.
O PT não tem candidatos. Esse é o primeiro problema. Os quadros do PT estão desgastados, ou são muito novos e desconhecidos. Consertar isso é difícil, leva tempo. É preciso rodar nomes, apresentar nomes, colocá-los para o eleitor, e perder eleições. Boulos já perdeu duas, e só cresce, só se torna mais forte politicamente. O mesmo pode ser dito de Manuela d’Ávila. O PSOL também tem crescido no legislativo. A medida que caminha nas eleições, faz mais vitrine, cria mais nomes, faz mais eleitos.
Essa é a segunda etapa do plano de reconstrução: o PT precisa fazer quadros no legislativo. A melhor estratégia para 2022 não é vencer a presidência, que provavelmente não conseguirá; mas formar uma forte bancada, e se tornar um partido relevante para o segundo turno; seja dando apoio a alguém, seja não dando apoio a ninguém.
O PT é um nome essencial na esquerda brasileira. É o partido desse campo com mais experiência de governo e de gestão, mas precisa se refazer em nomes. A forma de se reconstruir é povoar os cargos representativos, o legislativo. Nesse sentido, uma estratégia eleitoral interessante é apresentar um nome para mostrar uma nova cara do partido, mesmo que esse nome perca a eleição. Nem sempre partidos grandes têm nomes de consenso interno e com afinidade eleitoral. Esse é o momento histórico do PT, e da esquerda como um todo. O caminho para o poder, no entanto, está posto: fortalecer as bases, desenvolver plataformas modernas, ocupar vagas no congresso e nas assembleias. O caminho está posto.